Nos últimos anos, a área da teoria da memória de guerra tem-se desenvolvido enormemente, e a história oral tem sido uma das suas ferramentas mais poderosas para aceder a memórias pessoais e colectivas. Esta metodologia tem-se revelado fundamental na recuperação e/ou recolha de experiências de guerra, violência e trauma. Para alguns indivíduos, a guerra encontra-se sempre presente, é uma memória constante, indelével, visível nos seus corpos: quando um ex-combatente se encontra deficientado para toda a vida, tem de viver permanentemente com a guerra, e a sua experiência passada acaba necessariamente por determinar o seu percurso de vida futuro. Este artigo baseia-se no testemunho do Sr. A. Fortuna, um exemplo vivido desta realidade, um dos cerca de 30.000 ex-combatentes (Ribeiro, 1999) da Guerra Colonial Portuguesa (1961-1974) portadores de deficiência, entrevistado para um projecto de investigação de doutoramento sobre as memórias de veteranos deste conflito. Em 1971, o Sr. A. Fortuna, actualmente com 59 anos de idade, perdeu a visão e ambos os braços na Guiné-Bissau, algo que significou posteriormente uma vida inteiramente moldada pela guerra e pela sua deficiência. A memória relativa a este conflito - não obstante o facto de tratar-se de um evento incontornável da história portuguesa do século XX - continua, em grande medida, inexplorada. Alguns autores salientam que "a vergonha foi tal que, logo em 1974, [...] a Guerra Colonial foi cautelosamente varrida da memória colectiva" (Ribeiro, 1999), e os seus ex-combatentes encontram-se cobertos por um "sufocante manto de silêncio e de abandono" (Gomes, 2004), especialmente os deficientes de guerra, lembranças incómodas de uma guerra que o país parece não ter vontade de recordar. Tomando como ponto de partida a entrevista com o Sr. A. Fortuna, este artigo reflecte acerca de alguns dos desafios que um historiador oral tem de enfrentar quando entrevista veteranos de guerra deficientados. Pretende apresentar um exemplo de como a história oral pode ajudar a esclarecer um tópico menos visível da história portuguesa contemporânea.
In recent years, the war memory theory field has been developing enormously, and oral history has been one of its most powerful tools for accessing personal and collective memories. This methodology has been instrumental in recovering and/or collecting experiences of war, violence and trauma. For some individuals, war is ever present, it is a constant, indelible memory visible in one's body: when an ex-combatant is disabled for life, he has to live with war permanently and his past experience is necessarily life shaping. This paper is based on the testimony of Mr. A. Fortuna, a lived example of this reality, one of the estimated 30,000 disabled war veterans (Ribeiro, 1999) of the Portuguese Colonial War (1961-1974), who was interviewed for a DPhil research project on the memories of its ex-combatants. In 1971, A. Fortuna, now aged 59, lost his eyesight and both arms in Guinea-Bissau, something which subsequently meant a life entirely shaped by the war and his disability. This conflict's memory - notwithstanding the fact that this is a major event in 20th century Portuguese history - remains largely unexplored. Some authors point out that 'the shame reached such an extent that after 1974 the colonial war was cautiously swept away from the collective memory' (Ribeiro, 1999) and its ex-combatants are covered by 'a suffocating veil of silence and neglect' (Gomes, 2004), especially the war disabled, uncomfortable reminders of a war the nation is not willing to remember. Taking Mr. Fortuna's interview as a starting point, this paper reflects on some of the challenges an oral historian has to face when interviewing disabled war veterans. It aims at presenting an example of how oral history can shed some light on a less visible topic of Portuguese contemporary history.
La théorie de la mémoire de guerre a connu un grand développement ces dernières années, et l'histoire orale en a été un des principaux instruments pour accéder aux mémoires individuelles et collectives. Cette méthodologie s'avère fondamentale pour la récupération des expériences de guerre, de violence et trauma. Pour quelques individus, la guerre est toujours présente, est une mémoire constante, ineffaçable, visible dans leurs corps: quand un ancien combattant est mutilé, il est obligé de vivre avec la guerre, et son expérience passée détermine nécessairement le cours de sa vie. Cet article part du témoin de A. Fortuna, un exemple vécu de cette réalité, un des presque 30.000 anciens combattants mutilés (Ribeiro, 1999) de la Guerre Coloniale Portugaise (1961-1974), interviwé pour un projet de recherche de doctorat sur les mémoires des participants de ce conflit. En 1971, A. Fortuna, aujourd´hui agé de 59 ans, a perdu la vision et les deux bras à Guiné-Bissau, ce qui par la suite a signifié pour lui une vie entièrement dictée par la guerre et par son handicap. La mémoire de ce conflit - quoiqu'il soit un événement majeur de l'histoire du Portugal au XXème siècle - reste cependant inexplorée. Quelques auteurs signalent que "la honte a été si grande qu'après 1974, [...] la Guerre Coloniale a été soigneusement balayée de la mémoire collective" (Ribeiro, 1999), et ses anciens combattants ont été couverts par un "voile suffocant de silence et d'abandon" (Gomes, 2004) - surtout les mutilés de guerres, témoins gênants d'une guerre que le pays semble ne pas vouloir rappeler. En partant de l'interview de A. Fortuna, cet article réflechit sur les défis qu'un historien oral doit surmonter quand il fait des interviews avec des mutilés de guerre. Il veut montrer, au moyen d'un exemple, comment l'histoire orale peut aider à éclairer un aspect peu visible de l'histoire portugaise contemporaine.